PLANTÃO 24 HORAS
No cenário atual da segurança pública, a tecnologia surge como uma ferramenta cada vez mais presente e, por vezes, controversa. Entre as inovações que ganham destaque, as câmeras de reconhecimento facial se apresentam como uma promessa de maior eficiência no combate à criminalidade.
No entanto, a implementação dessas tecnologias no Brasil levanta uma série de questionamentos que vão além da simples vigilância, tocando em pontos sensíveis como a privacidade, os direitos individuais e a própria definição de crime na era digital.
O que propõem as câmeras de reconhecimento facial?
As câmeras de reconhecimento facial são sistemas que utilizam algoritmos avançados para identificar pessoas em tempo real, comparando suas características faciais com bancos de dados pré-existentes.
A proposta central por trás da instalação dessas câmeras em espaços públicos é aprimorar a segurança, permitindo uma resposta mais rápida a incidentes e a identificação de pessoas procuradas pela justiça. Elas prometem atuar como um "olho" onipresente, capaz de inibir a prática de delitos e auxiliar na elucidação de crimes.
Para as forças policiais, a agilidade na identificação de suspeitos e foragidos é um dos benefícios mais destacados. Em situações de flagrante ou na busca por indivíduos com mandados de prisão em aberto, o sistema pode emitir alertas instantâneos, otimizando o tempo de resposta das equipes.
Além disso, a tecnologia auxilia na busca por pessoas desaparecidas, oferecendo uma ferramenta adicional para localizá-las. A capacidade de monitoramento em tempo real também permite que as autoridades atuem de forma preventiva, identificando comportamentos suspeitos em grandes aglomerações, como eventos e manifestações.
Tecnologia traz preocupações e polêmicas
Apesar dos potenciais benefícios, a implementação em larga escala das câmeras de reconhecimento facial é cercada por polêmicas e levanta sérias preocupações. A principal delas reside na questão da nossa privacidade. A vigilância constante e a coleta massiva de dados biométricos, sem regulamentação clara, podem levar a uma sociedade de vigilância em massa, onde os nossos passos são monitorados e registrados.
Outra preocupação latente é o viés algorítmico. Estudos e casos práticos têm demonstrado que os sistemas de reconhecimento facial podem apresentar taxas de erro desproporcionalmente elevadas para determinados grupos populacionais, como negros e mulheres. Isso pode resultar em prisões injustas e na criminalização de inocentes, aprofundando desigualdades sociais e raciais já existentes.
Além dos vieses, a possibilidade de erros técnicos é real. Por exemplo, em 2024, um homem foi preso injustamente em Sergipe após uma falha no sistema de reconhecimento facial em um estádio, evidenciando a fragilidade da tecnologia quando utilizada como única prova.
A falta de transparência sobre como esses sistemas são treinados, quais dados são utilizados e como os erros são corrigidos agrava ainda mais a situação, dificultando a responsabilização em caso de falhas.
Reconhecimento facial já é realidade em todo o país
O Brasil já possui um extenso uso de reconhecimento facial em segurança pública, com 195 projetos documentados em todos os estados. Grandes centros urbanos e até mesmo cidades do interior têm adotado a tecnologia.
São Paulo, por exemplo, já conta com cerca de 27 mil câmeras de reconhecimento facial instaladas pela prefeitura, até junho de 2025, integradas ao programa Smart Sampa.
A Bahia é outro estado que se destaca, com 1.500 câmeras de monitoramento instaladas, das quais 500 contam com reconhecimento facial, segundo informações da Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA). Essas câmeras estão presentes em Salvador, na Região Metropolitana e em 80 municípios do interior. Por lá, foram registradas 3.291 prisões realizadas com o uso do sistema, desde o seu lançamento em fevereiro de 2019 até maio de 2025.
Durante eventos de grande porte, a tecnologia também tem sido amplamente utilizada. No Carnaval de 2025, em Minas Gerais, a Polícia Militar utilizou drones equipados com câmeras de reconhecimento facial para identificar e monitorar as pessoas. No Rio de Janeiro e na Bahia, o Carnaval também se tornou um centro de implementação.
Na Paraíba, durante a maior festa de São João do Brasil, o Parque do Povo em Campina Grande é monitorado por cerca de 45 câmeras de reconhecimento facial, integradas a um total de 180 câmeras, em 2025.
Aqui em Caxias do Sul/RS, de onde escrevo, a prefeitura iniciou um estudo para a implantação de câmeras de reconhecimento facial na cidade. O Centro Integrado de Operações (CIOp) de Caxias do Sul já opera com 400 câmeras de monitoramento e 73 de cercamento eletrônico, e a adição do reconhecimento facial seria um próximo passo.
Não estamos preparados para essa tecnologia
Um dos pontos mais preocupantes em relação ao uso das câmeras de reconhecimento facial é a falta de regulamentação específica. Apesar da existência da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que protege os dados pessoais e a privacidade dos usuários, a aplicação dessa lei aos sistemas de vigilância em massa ainda é um campo cinzento. A ausência de uma legislação clara permite que a maioria dos sistemas de reconhecimento facial opere sem transparência e sem mecanismos de controle.
Essa lacuna regulatória pode ter impactos diretos e profundos na sua vida, sabia? A vigilância constante pode gerar um sentimento de cerceamento da liberdade, inibindo a participação em manifestações ou a simples circulação em espaços públicos.
Além disso, a coleta indiscriminada de dados biométricos pode levar a abusos, como a criação de perfis de cidadãos, o monitoramento de suas atividades e até mesmo a discriminação baseada em características raciais ou sociais, como já vem sendo identificado.
A falta de relatórios de impacto e de políticas adequadas de proteção de dados é um achado preocupante em 80% dos casos de implementação, conforme o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) e o Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin).
Apesar da ausência de uma lei específica, o Código Penal prevê crimes que podem ser relacionados à violação da privacidade e ao uso indevido de dados pessoais.
O artigo 154-A do Código Penal criminaliza a invasão de dispositivo informático para obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular da conta ou do programa, ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita. Embora não se refira diretamente ao reconhecimento facial, a coleta e o tratamento indevido de dados biométricos podem, em tese, configurar essa conduta, caso haja a invasão de sistemas ou a obtenção de dados de forma ilícita.
Outros artigos do Código Penal que tratam da inviolabilidade dos segredos, como o artigo 153 (Divulgação de segredo) e o artigo 154 (Violação de segredo profissional), também podem ser aplicados em situações onde informações obtidas por meio do reconhecimento facial são divulgadas sem consentimento ou utilizadas de forma indevida, causando prejuízo a terceiros.
Você precisa estar informado para exigir os seus direitos
As câmeras de reconhecimento facial representam um avanço tecnológico com potencial para auxiliar na segurança pública. No entanto, a forma como essa tecnologia está sendo implementada no Brasil, sem uma regulamentação clara e com preocupações crescentes sobre privacidade, vieses e erros, exige um debate urgente e aprofundado.
Nós, como sociedade, aliados a especialistas em direito, tecnologia e segurança pública, precisamos nos unir para garantir que o uso dessas ferramentas respeite os nossos direitos fundamentais e não se torne um instrumento de vigilância indiscriminada ou discriminação.
A segurança não pode vir à custa da liberdade e da dignidade humana. A transparência, a responsabilização e a fiscalização rigorosa são pilares importantes para que a tecnologia seja, de fato, colaborativa com a justiça e a cidadania.